De volta ao básico, e mais atentos ao emocional, ao amor, à solidariedade. Para entender o que se passa com as pessoas que já estão atravessando o auge da curva de propagação da pandemia do Covid-19, fomos ouvir o que eles têm a dizer, e como estão suas vidas. Nos relatos, apesar de toda a privação, a preocupação é sempre ligada a preservar vidas, e não a economia. Entre as faltas maiores, além da dor irreparável da perda de entes queridos, está a valorização de coisas simples como um abraço, o vento no rosto, o sol na pele.
E em todas as falas, uma esperança: a idéia recorrente de que toda essa tristeza sirva para colocar a Humanidade em um caminho maior de afeto e consciência. Com a palavra, elas.
E de coração, que essa positividade traga conforto a vocês:
“Quero ver as pessoas lá embaixo, no melhor das suas rotinas e desejando que cada uma delas tenha sido agraciada com a possibilidade de conservar na lembrança a ideia de que sozinho ninguem está salvo.”
Meu nome é Ana Cecilia de Miranda Loureiro. Tenho 48 anos, vivo em Florença na Itália, e trabalho no setor do turismo e numa escola de Italiano para estrangeiros.
Hoje 29/03/2020 a situação na região onde moro, a Toscana, começa a dar sinais de estabilização de contagios depois de 18 dias de quarentena restrita. Gradativamente os numeros de contágios se mantém estáveis e tendem a diminuir (é esta a nossa grande aposta).
Tudo isto fruto de uma intensa e dedicada decisão da maior parte da populaçao em estar em casa #iorestoacasa, guiada pelas autoridades de saúde e pelo governo através da palavra do primeiro ministro e de todos os envolvidos no poder publico de todas as esferas.
O meu emocional anda extremamente melhor a partir dos últimos dias. Parece brincadeira, mas a quarentena em muitos aspectos me agrada hoje. Apesar da preocupação financeira estar sempre presente, percebo que me sinto cada vez mais humana no ponto de vista da consciência de poder adaptar-me a qualquer situação improvável. Mas isto não foi automático.
Ja estou em casa há 18 dias seguidos. Vivi muitas vidas neste periodo.
Ontem ouvi um senhor de 70 anos me dizer: Ana, se observarmos a vida em um “cárcere” e notarmos que dali tantas vezes temos exemplos de muitos presos que se matam e outros tantos que se diplomam podemos desenhar uma rota para a nossa quarentena, afinal temos uma grande diferença. Somos livres.
O que tem me deixado mais triste é a quantidade de mortes diárias por aqui que ainda persistem.
Sinto falta de pedalar olhando o rio.
Minha rotina é parecida àquela que tinha aos fins de semana. Todavia, procuro regrar os dias da semana como se estivéssemos num cotidiano normal. Tenho trabalho online na escola e mantenho atualizadas as atividades possíveis no computador.
Tenho cozinhado muito. Posto as coisas em ordem na casa.Conversado muito com meus filhos. E dedicado muito tempo à musica e ao sol.
Quero ir ao mirante aqui da cidade e olhar ao redor por horas. Quero ver as pessoas lá embaixo, no melhor das suas rotinas e desejando que cada uma delas tenha sido agraciada com a possibilidade de conservar na lembrança a ideia de que sozinho ninguém está salvo.
E que há de haver um tempo melhor pra todos.
Que esta lembrança venha acompanhada da vontade necessaria de melhorar algo ao redor de si mesmo contando com a garantia cheia de esperança de que dentro, inexoravelmente, já nos transformamos em alguém melhor.
Essa foi a maior lição de humildade que a humanidade levou nos últimos tempos e é evidente agora que não podemos voltar à « vida normal de antes », porque de normal ela não tinha nada. Está tudo aí como prova!
Enquanto prepara o almoço para uma vizinha de 96 anos, Thais de Melo, 46 anos e chef de cozinha, me descreve como tem sido esses dias de isolamento. Ela mora em Cannes, e conta já o 14 dia sem sair de casa, a não ser para atividades essenciais, e mediante autorização do governo.
No dia em que nos falamos, em 28 de abril, a França contabilizava 32.964 casos confirmados de coronavírus COVID-19, e quase 2 mil pessoas morreram desde o início da epidemia. Duas semanas antes, o estado havia decretado o estado 3 da epidemia – o que quer dizer que o vírus já se encontrava presente em todo o território nacional – e o confinamento total foi adotado:
Hoje estamos no 14 dia de confinamento e eu tenho consciência do privilégio de podermos estar – eu, minha família e meus amigos – em nossas casas, com saúde e em segurança, alimentados e podendo nos comunicar tão facilmente, tendo em conta a situação terrível que está atravessando tanta gente nesse momento, entre a vida e a morte nos hospitais, ou tendo perdido seus entes queridos sem poder nem se recolher ou se despedir (medidas severas nesse aspecto também). Seria indecente reclamar de qualquer coisa agora.
Tenho a sorte de ser muito otimista, adaptável e de natureza positiva e isso tem sido essencial pra atravessar tudo isso com resiliência e esperança.
Para manter o equilíbrio, recorro à meditação, boa alimentação (tenho cozinhado tomando meu tempo e curtindo muito), atividade física, vendo bons filmes, séries, livros (de preferência alegres e leves), música (sempre!) e aproveitando o luxo de poder por o papo em dia com meus amigos no mundo inteiro. Confesso que se não fosse esse horror de dor e tristeza a causa desse confinamento, eu estaria quase gostando dele por ele ter permitido que nos reconectássemos a um ritmo e a um tempo que havíamos esquecido.
Mas vai ser difícil romper de forma abrupta esse silêncio e esse ritmo que se instalou. O impacto positivo na natureza foi gigante durante esse momento de confinamento, e eu quero aproveitar pra conectar-me com ela nesse estado o máximo que der.
Também quero nunca mais esquecer de criar momentos assim em minha vida, pra não perder mais contato com esse tempo que foi o da infância: da contemplação, da instrospecção e pra agradecer muito por cada dia de vida e de saúde: dos meus filhos , minha e das pessoas que eu amo.
E espero, do fundo do coração, que o mundo mude depois disso. Essa foi a maior lição de humildade que a humanidade levou nos últimos tempos e é evidente agora que não podemos voltar à « vida normal de antes », porque de normal ela não tinha nada, e está tudo aí como prova!
A coisa mais positiva durante todo esse episódio foi um movimento bacana (enfim) de questionar a maneira que vivemos, que nos relacionamos, que consumimos e que tratamos o nosso planeta. Espero que a humanidade não tenha memória curta e possa renascer dessa tragédia mais consciente, responsável e solidária.
O que mais sinto falta é de estar em contato com a natureza, respirar, ver os amigos. Tudo o que está acontecendo já está nos despertando para uma nova consciência. Temos que mudar a nossa forma de se relacionar, respeitar o planeta e o próximo.
Quando a Cristiane me deu seu depoimento, a sogra estava ainda hospitalizada. Hoje, na data em que publico esse post, recebi a notícia de que ela estava recebendo alta do hospital e sendo transferida para um centro de reabilitação de pacientes do Covid-19.
Uma boa notícia, entre tantas privações, e a certeza – segundo a Cris – de que vivendo um dia de cada vez, no fim #andratuttobene.
Meu nome é Cristiane Cardoso Xavier, sou tradutora, 43 anos, e vivo em Bérgamo, na Itália, há 20 anos. Aqui em Bérgamo é o epicentro da epidemia. A situação é séria, dramática e surreal.
O governo tomou medidas drásticas para conter a contaminação desde 23 de fevereiro. Todo o país foi isolado, e as pessoas obrigadas a permanecer em quarentena por um período ainda indeterminado. O que está aberto são apenas supermercados, farmácias e bancas de jornais para bens de primeira necessidade.
Meu emocional é colocado à prova em todo momento porque todos da família do meu marido foram contaminadas pelo Covid-19, e há dois dias perdemos o meu sogro.
Nessa situação na qual nos encontramos, o mais triste foi não pode dizer adeus, com um velório, um missa, uma cerimônia digna desses 80 anos que meu sogro viveu. Além o fato de não podemos nos abraçar para nos confortarmos. É dilacerante.
O que mais sinto falta é de estar em contato com a natureza, respirar, caminhar livremente com meu cachorro, ver os amigos.
Minha rotina é baseada em cuidar do meu marido que ainda necessita de cuidados, assistir filmes e falar com amigos por mensagens, além de praticar alguns exercícios e meditação.
Quando acabar tudo isso, vou abraçar meus familiares, dançar, fazer uma longa caminhada no bosque.
Tudo o que está acontecendo já está nos despertando para uma nova consciência.
Temos que mudar a nossa forma de se relacionar, respeitar o planeta e o próximo, transmutar essa energia negativa em atitudes que possam nos fazer ser mais solidários, fraternos e amorosos. Só assim poderemos ser melhores e do bem
Acho que depois disso tudo, o mundo será outro. Espero que o individualismo ceda espaço à solidariedade porque avulsos da humanidade, o nosso valor é ínfimo como aquele de uma cidade vazia. Espero que cada um entenda que não há vida sem outras vidas ao nosso redor.
Meu nome é Anelise Sanchez, 43 anos, moro em Roma, Itália, há 18. Sou jornalista e blogger de turismo.
Estamos em lockdown em Roma desde o último dia 4 de março. Aqui os primeiros casos de Covid-19 foram registrados no dia 29 de janeiro e a partir de março cresceram exponencialmente, obrigando o governo a adotar rigorosas medidas restritivas.
Escolas e atividades comerciais não serão reabertas no dia 3 de abril, como previsto inicialmente. Em Roma, assim como no resto da Itália, só podemos sair de casa depois de preencher um formulário declarando os motivos do deslocamento. Só é aconselhável sair para fazer compras de alimentos, remédios ou urgências. As ruas estão desertas. O silêncio paira no ar. A vida suspensa.
O emocional, nesse momento, é como uma montanha russa. Alterno momentos de esperança com outros de tristeza e choro espontâneo. A sensação de impotência, de não ter o controle total sobre o próprio destino, desorienta. Me deixa triste ver um país como a Itália, caracterizado por estreitas relações familiares, por demonstrações físicas de afeto, pelo hedonismo e pelo amor à vida, como uma paciente que veste uma camisa de força.
Em cidades como Bergamo, há famílias que perderam mais de um parente no mesmo dia. Impossível não compartilhar com elas a dor do luto e não me emocionar diante de cenas emocionalmente devastadoras como os carros do exército repletos de corpos sem vida.
Por isso é tão doloroso ver que, em momentos de crise inédita como essa, muitos países europeu ainda coloquem em primeiro plano suas divergências econômicas.
Sinto falta da cotidianidade, da rotina. De pequenos costumes como aquele de degustar um cappuccino na cafeteria, conversar com minha vizinha, fazer compras sem a paranoia dos altos falantes que pedem para que você realize tudo rapidamente, pegar transporte público sem medo, abraçar um amigo sem pensar duas vezes.
Sinto falta daquilo que os italianos chamam de “spensieratezza”, leveza, de poder atravessar a cidade a pé e parar para fotografar as suas belezas.
De uma certa maneira, tento manter uma rotina todos os dias, mas nem sempre é fácil quando você perde a conta de qual dia da semana está vivendo, quando os dias se confundem com as noites e não há mais sábados e finais de semana.
Acordo cedo, tomo café, trabalho, tento ler várias fontes de informação brasileiras e italianas, cozinho e faço ginástica em casa. É complicado aceitar a ideia de me auto conceder momentos de dolce far niente porque o pensamento chega até aqueles que não podem parar porque combatem uma guerra pela vida. Tento meditar, saio na sacada para ver um raio de sol e a primavera que chegou.
Quando tudo passar, acho que vou abraçar meus amigos e voltar a fazer aquilo que amava, percorrer Roma a pé, de cabo a rabo, e sentir-me mais uma vez privilegiada por estar circundada de tanta beleza e história.
Acho que depois disso tudo, o mundo será outro. Sim, porque havíamos esquecido o quanto somos frágeis, permeáveis a emoções, e que somos mais do que carne perecível.
Espero que o individualismo ceda espaço à solidariedade, porque avulsos da humanidade, o nosso valor é ínfimo como aquele de uma cidade vazia. Espero que cada um de nós aprenda a dar um valor relativo a coisas secundárias. E que entenda que não há vida sem outras vidas ao nosso redor.
Não é possível que tenhamos que passar por isso e não mudaremos nossa forma de existência. Vejo aqui redes de solidariedade se formando, e espero que as relações sociais e de consumo se modifiquem, e que daí surja uma sociedade mais justa, em que a vida realmente tenha valor.
Eu sou a Gabriela Temer, tenho 45 anos, moro no Rio, sou jornalista, casada com o Rico e mãe da Juju. Sou em quem vos escreve.
Os dias não tem sido fáceis. No começo, o isolamento parecia as férias que nunca tiramos. Entramos em quarentena antes da determinação do governo; já tínhamos testemunhado a pandemia em outros países, e nos recolhemos em respeito à vida e em solidariedade aos que dias depois entrariam na linha de frente dessa guerra.
Hoje, 20 dias depois, oscilamos entre momentos de bom humor e de medo. Medo pelas pessoas que possam vir a sofrer, medo pela nossa família. Nesse primeiro momento, ocupamos nossas rotinas com atividades mais físicas que mentais – como cuidar da casa e nos exercitar na sala, talvez para não ter mesmo tempo para pensar – e não saímos nem para o mercado.
Pedimos tudo online, e sempre tentando ajudar os entregadores financeiramente com boas colaborações; sabemos que quem pode um pouco mais, deve ajudar quem pode um pouco menos.
E não que a gente possa: nossos ganhos estão paralisados. Mas sei que somos privilegiados, e que estamos em isolamento – um luxo no Brasil.
Aqui, os governos vivem no mundo da anticiência, e o capital mantém sua rotina esmagadora. Por pressão das federações empresariais, o isolamento sofreu relaxamento essa semana. Me preocupa o futuro das pessoas obrigadas a trabalhar em comércios que não são essenciais. Restaurantes com deliveries, autopeças, o setor de construção, lojas de roupas e até papelarias.
A questão econômica será um problema inevitável, mas nos preocupa mais a vida.
O que mais sinto falta é da minha mãe, de abraçá-la. Sinto falta também do mar, do sol, da areia quentinha, de dançar, e das viagens. Sempre a vida, as pessoas, e não as coisas.
Por isso, eu acredito na mudança. Não é possível que tenhamos que passar por isso e não mudaremos nossa forma de existência. Vejo aqui redes de solidariedade se formando – principalmente diante da ausência do estado – , e espero que as relações sociais e de consumo se modifiquem, e que daí surja uma sociedade mais justa, em que a vida realmente tenha valor. E nisso se incluem as relações de trabalho, de igualdade e de cuidado com o planeta. No Brasil, a grande mudança ainda não começou. Mas precisa vir.